POIS É... ENTÃO AQUI DEIXO MAIS UMA PARTE DO MEU PRIMEIRO LIVRO DA TRILOGIA DO PERFEI0TO DO IMPERFEITO.
Cada
pessoa possui a sua diferença, e, embora muito parecida que possa ser em certos aspetos, nunca será
igual. A diferença reside justamente aí, junto das pequenas, mas grandes diferenças!
- Bom dia… bom dia… estas eram as palavras
mais badaladas,
do nosso Jacó, o papagaio que entrou dois meses
depois de Francisca. Todos
os utentes, cheios de boa vontade, quiseram contribuir para a sua compra, ainda bebé. Era muito querido, por todos, pois aprendeu
a pronunciar certas palavras e a imitar alguns sons, muito comuns. Sim… aprendeu a imitar os
utentes e a surpreende-los,
com o seu sotaque de aves. Um
dia partiu, com a gripe das aves. Num ano em que a gripe pegou a todos com força e contagiou outros, o Jacó não foi
exceção… depois de ir murchando, lentamente, voou para uma vida mais tranquila.
Por vezes, basta um pequeno
gesto para concretizar uma enorme necessidade. E era
nesses simples gestos, cheios de boa vontade, que diversas vezes se afugentava
esse
mau estar. Ela sabia o quão complicado
e difícil
era, para muitos, tentar procurar a melhor solução. Já diz o
ditado que diz: mais vale o jeito que a força...
A força das pequenas
coisas… curtos incidentes
ocasionais que muitas vezes se tornam demasiado
desagradáveis…
os chamados percalços do dia-a-dia. O que por vezes se pensa
ser
desnecessário
para
a maioria, faz com certeza falta a outros.
Ela dizia-se a si própria que o segredo estava em nunca
desistir, apesar de a vontade ser
várias vezes contraditória. Aprendeu a aceitar essa real verdade, que
inúmeras vezes se transformavam em dúvidas, e depois em pesadelos.
Porque só quem vive as
situações na pele
sabe dar o devido valor. Aprende-se
a valorizar o
que na maioria das vezes é tão simples.
Francisca, na sua cadeira de rodas,
respirou fundo e
dirigiu-se ao quarto ao lado, que era o de uma
das novas residentes. Aproximou-se,
e pela porta
entreaberta perguntou:
- Posso penetrar? Perguntou ela rindo-se, com um
sotaque abrasileirado e brincalhão. Foi talvez, a única pessoa que conquistou
e, inclusivamente,
deixou-se conquistar por esse belo sentimento chamado amizade.
Talvez pelo trágico destino que as
unia… existe sempre uma razão, para tudo!
- Claro que podes, sim entra!... Respondera Maria,
esfregando os olhos com a mão e, no rosto, alguns vestígios de tristeza.
- Estiveste a chorar outra vez? Questionou Francisca, adivinhando o que era bem
visível, ao notar os seus olhos inchados
pelo cruel fracasso da vida.
- Isso não vai renovar o passado!
Só te vai deixar ainda mais impaciente e frustrada...
disse, tentando aliviar
o fracasso angustiante daquela existência.
- Eu sei... Mas alivia um bocadinho... Faz este
peso ficar mais ameno... Respondeu Maria, que ao
mesmo tempo tentou
sorrir,
apesar de ter esboçado um sorriso sombrio e com
vestígios de dor.
Havia um especto em que ela tinha inteiramente razão: a saudade do passado, que não muda o presente,
pode trazer recordações repletas de doçuras para adoçar o azedume do dia-a-dia. Mas pode também deixar-nos ainda mais fracassados. Só com a nossa aprendizagem
sabemos lidar com isso, e tentar conquistar um
futuro mais proveitoso!
Francisca e Maria tinham aproximadamente a
mesma idade e entraram ali com condições
muito parecidas.
Francisca já há quase dez anos que estava ali, dez longos
anos, que mais pareciam o
dobro, em torturas. Sim... Porque sofria no corpo, na alma e na mente os sacrifícios que a maioria das pessoas recusaria aceitar.
Sentia-se na obrigação
de recolher essas migalhas indesejáveis, as que, infelizmente, o destino lhe reservara. Maria,
pelo contrário, nunca tinha
aceitado as consequências do
trágico acidente que lhe roubara a principal
fatia
da vida. Vivia revoltada com tudo e com todos, mas no fundo somente
com ela, com a tragédia decorrida na estrada da vida.
Francisca fazia os possíveis para compreender a amiga, dando-lhe razão e todo o apoio necessário,
e
imaginava o quão difícil deveria ser perder o que ela
perdera.
Tinha perdido… naquele acidente perdera a
família: os pais e o irmão. Perdera também própria saúde autonomia e liberdade.
O acidente deixara-lhe o corpo demasiado danificado, apenas com um rim a trabalhar. O outro rim ficara completamente perfurado com os ferros do carro
e, por essa razão, era obrigada a usar fralda,
pois ficou impossibilitada
de controlar a própria urina. Perdera também uma parte da visão, devido aos vidros do carro, que lhe atingiram
os olhos. Não conseguia distinguir nada, do olho esquerdo,
e muito pouco do direito. Até
as cordas vocais projetavam
uma voz bastante presa. Os braços e as pernas ficaram imobilizados, quase por completo e
por isso quase não tinha sensibilidade.
Francisca dava tudo a Maria, desde o apoio à amizade sincera, o principal da vida que ela tinha para
dar
e que Maria precisava. Queria muito
faze-la sentir que, infelizmente, não fora a única a
ganhar a injustiça
do destino. Gostava de conversar
com ela sobre qualquer assunto e de lhe contar todo o tipo de anedotas.
Era assim que ela esquecia
um pouco mais as
grandes coisas que a faziam infeliz. Era uma
alegria
sempre que alguma pessoa a
conseguisse fazer rir.
Maria enxugou devagarinho
as lágrimas
nostálgicas que espreitavam dos seus olhos, e que ela deixava seguir caminho,
para saciar a sede da
saudade e da impotência.
Ela
chorava apenas, quando
se sentia sozinha,
para
despejar à vontade, todo o
seu
conteúdo, amargo.
Por muito que alguém se
esforçasse
nunca, ninguém seria capaz de compreender a frustração
e a
revolta de Maria. Só porque cada caso é único e
manifesta-se, sempre, de maneira diferente.
- Como te sentes hoje, amiga?
Tens
alguma dor, além do normal?
- Não mais que o costume… no corpo.
Porque da alma… nem vale a pena falar!-Respondeu ela
destroçada e com o rosto banhado
na completa tristeza.
- Imagino,
mas, quanto a isso, ninguém pode
fazer nada, tu sabes bem! Terás de te aguentar…
como eu! É a vida.
- Infelizmente,
sei que é verdade! - Respondeu Maria com um suspiro. Nesse instante, um grito agudo
faz-se ouvir, deixando-as preocupadas. Logo a seguir, mais alguns seguiram o mesmo caminho. Assim nasceu uma revolução de gritos que provocam
um autêntico reboliço.
- Alguém está a protestar! - Disse Francisca, ao sorrir para a amiga, que também deixou escapar um sorriso, ainda que meio amargo.
- Deixa lá que não é o único…
se eu pudesse também protestava…
mas contra a vida! Porque ela é feita para viver e não para a vermos passar!
- Nisso tens inteiramente razão, mas quem não tem culpa é quem paga... Enfim, é sempre
assim, pagam
uns
pelos erros dos outros, e agora calhou-te a ti, são essas as injustiças
da vida! Não podemos fazer nada contra isso,
nem
modificar este completo desespero
que nos invade diariamente!
- Pois é…
e digo-te estaria disposta
a oferecer a minha parte mental a quem dela
pudesse fazer bom proveito… mas, não posso!
- Acredito!
Nem eu me importava nada de trocar, ou mesmo dar, a minha
melhor parte, assim ficava maluquinha, de uma vez por todas! Francisca tentava, sempre encontrar alguma
piada para a
fazer rir, pois ela continuava com o seu sorriso
forçado, mas encantador.
- Sim, é verdade, acho que tudo ficaria mais fácil do que
estar assim… obrigada a
carregar conscientemente esta doidice…
- Realmente… acho que
nós,
tendo a mente sã num corpo imperfeito,
sofremos ainda mais.
- Concordo, a lucidez da mente, impede-nos de agir conforme a consciência nos manda, tudo isto por culpa do corpo… respondeu Maria esforçando-se por manter sorriso, ainda que meio-triste.
- Vamos é esquecer tudo isto, se não corremos
o risco de ficar mesmo! - Disse Francisca com ar de riso, que
contagiou a amiga.
- Cuidado, que isto pega-se…
- Podes crer, mas ainda bem,
por
um lado…
Riram as duas com vontade, mas Francisca, depois de suspirar, prolongou a
conversa…
- Como dizia a falecida Maria da Luz… vale
mais ser maluca, que ser inteligente… embora
dissesse isso só quando a chateavam!
- Nesse aspeto, ela tinha inteiramente razão…
às vezes vale mais, sim!
- Pois… sabes que no segundo
dia em que aqui estive, estava eu sentada
em cima da cama, a escrever
poemas e histórias, quando ela chegou
e me disse sorridente da entrada
da porta:
- Olá, fo-fo-finha, como me chamava. Como
não conseguia articular bem
as palavras, prosseguiu com aquele sotaque, só dela - tás tão gira, tás a
stoder? Eu, sem saber o que responder, fiquei de boca aberta, a olhar para
ela…
só depois percebi o
que ela queria dizer
e deu-me uma vontade de rir…
parecia uma parvinha!
- Podes
crer,
o que vale nesta casa, é que, de
vez em quando, a alegria explode.
Mas, outras vezes, o tempo passa e nem damos por isso, como agora…
- disse Maria depois de olhar para as horas e com um
sorriso nos lábios.
- Sim, lá isso é verdade, porque a maioria das
vezes, demora demasiado...
Francisca e Maria deram-se
conta que a hora
do jantar se aproximava e Francisca comentou:
- Bom, sabes o que vamos
comer? Li, na ementa,
que
hoje o jantar é outra vez atacadores com
bolinhas – disse
enquanto soltou uma bela gargalhada.
- Pois, vira o disco e toca o mesmo!-Respondeu Maria rindo-se.
- Como dizia a Maria da
Luz: hoje é: - Parrete com aumogas, que bom, até me nasce uma alma nova... Ela adorava esparguete, então,
de cada vez que isso acontecia,
era uma festa para ela e fazia sempre aquele comentário.
- Tão cómica…
pelo que oiço dizer… porque não cheguei a tempo de a conhecer...
- Era tão engraçada e tão
querida, dizia
cada coisa quando não conseguia fazer bem a articulação das palavras… que Deus a tenha em bom descanso e que vele por nós… que bem precisamos!
- Acho que sim, que está melhor. Por isso é que nunca ninguém
vem
cá dizer nada, senão todos
quereriam ir para lá!
- Assim é segredo... Só saberás quando lá
chegares… mas até lá tens que aguentar...
- Pois… Não há outro remédio…
- Claro, o que tu querias sei eu! Mas, o que não tem remédio, remediado está!
E para além do
Mais, só irás quando chegar a tua vez porque até lá tens que nos
aturar! - Rematou Francisca, com um sorriso deveras brincalhão!
- Que remédio… - disse Maria ao rir-se para ela. –
E vice-versa também, deixa lá! Mas principalmente, terei que me aguentar a mim mesma… e olha que sou bem chatinha!
– Disse enquanto lançou um sorriso.
E, divertida, continuou: - O que vale, é
que espero sempre sentada,
pelo menos assim não me canso!...
- E olha que não és a única, eu também
espero sentada! Falando neste assunto,
lembrei-me agora de uma anedota
que tem a ver com o que
acabámos de falar…
- Conta lá… agora quero ouvir!
- Pronto, está bem, também
é rápido...! Disse
Francisca
para
Maria com um agradável
sorriso. Então, ela começou.
- Um dia, Deus desceu
à terra para ver com
os próprios
olhos como estava o mundo, pois só ouvia queixas atrás de queixas.
Foi
justamente, cair
num consultório médico, na hora de mudança
de turno. Vestiu uma
bata branca e sentou-se no consultório, em frente à
secretaria, quando começou a chamar, calmamente:
Chegou o primeiro
paciente, numa cadeira de
rodas, sem lhe dar a oportunidade de falar, então
levantou os braços e disse:
- Levanta-te e anda!
Assim aconteceu, mas, quando saiu, ao empurrar a
sua cadeira de rodas e, com uma
expressão de surpresa, passou pela sala de espera onde estavam
os outros pacientes,
e um
deles perguntou-lhe:
- Tão rápido! E já vens a andar e tudo, esse médico deve ser ótimo, o que achaste?
Com um ar meio apatetado e apressado ao encolher os ombros, ele respondeu:
- Oh... São todos iguais, uma pessoa entra, nem perguntam
nada e passam logo a receita e, está feito, mas respirando
fundo continuou...
- Este, nem receita passou, realmente, é tudo a mesma coisa, todos farinha do mesmo saco!...
- Boa! Tem
a sua lógica... Maria riu com
gosto e, suspirando continuou:
- Eu quero que seja, o meu médico,
dás-me a
direção, para eu ir procurá-lo?
- Ai se eu soubesse... achas que já não tinha
ido
lá? Aliás, nem estaria
aqui para te fazer rir, não achas?
- Oh se acho!
Assim, acabaram as duas
às gargalhadas naquele
fim de tarde, tao parecido
com tantos outros, mas
no fundo tão desigual.