Deixo aqui mais uma arte do meu livro.
Quando ficou a conhecer a maioria dos residentes,
pensou na sorte que tinha,
simplesmente porque estava consciente e, apesar de tudo, podia mexer o seu corpo. Enquanto uns, esperavam
na cama inativos, sem saberem o quê, nem porquê… outros falavam ou olhavam
sem sentido. Outros
aguardavam nas suas cadeiras de
rodas um pouco de atenção ou respeito
e outros ainda corriam pelos corredores.
Era o jogo do tudo ou nada,
o jogo da vida.
Enquanto uns tinham a sorte de ter a saúde física, outros
tinham apenas
a mente saudável, mas infelizmente só isso…
lucidez na mente.
Embora fosse o lar mais adaptado
para
Francisca, apesar de tudo sentia-se
desajustada,
pois não se enquadrava naquele lugar, assim dizia a sua voz interior. Talvez fosse essa a verdadeira razão, só porque havia situações muito diferentes, desde personalidades diferentes à falta de saúde física. Mas Francisca sabia que tinha que aceitar esse facto,
do qual nunca poderia fugir.
Além de ser uma casa bastante
espaçosa, com
enormes corredores e grandes salas de estar, era
talvez a única com a oportunidade de trabalhar,
algo deveras ambicionado por ela.
Francisca precisava
estar ocupada, não queria
continuar inativa, desejava muito usufruir do que pudesse tirar partido,
sendo útil para todos os que precisassem. Ansiava compartilhar os momentos de
alegria, os momentos
felizes, aqueles que a saúde lhe pudesse trazer, ainda. Estava consciente que
ajudar era sempre o melhor remédio, mas por vezes
também
precisava
de ser ajudada. Sim, precisava de saber porque estava ali, mas, principalmente saber
porque é que Deus, ou fosse o que fosse,
autorizava tais injustiças.
Os dias passavam, mas para Francisca eles corriam a cada dia
um pouco mais devagar.
Ocupava os tempos livres, que eram muitos, como bem entendesse. Ora ajudava ou era ajudada, ora ensinava ou aprendia, não faltava o que fazer, para quem quisesse. Era esse o seu principal objetivo, o de estar, constantemente, ocupada, aprendendo
algo de novo. Havia
sempre
alguma coisa a aprender ou a ensinar,
a questão era querer! Tudo isto com uma
única finalidade: a de manter a sua mente
sempre
distraída.
Não queria ter tempo
para
nada, principalmente para pensar. O que muitas vezes
era demasiado doloroso, mas também obrigatório. Pois
a reflexão faz parte do recheio do dia a dia. E é
óptimo refletir sobre
o que se passou, ajuda-nos
bastante a compreender
o presente e a valorizar melhor o futuro.
No entanto, via-se também
na obrigação de admitir
que o
passado não muda. Feliz ou infelizmente, somos nós que temos de mudar, ao sabor do
tempo. Em muitos aspetos e, por maior que fosse a vontade de mudar, tudo continuava exatamente na
mesma. Francisca não sabia se havia de discordar ou concordar com esta real contradição,
porque achava inclusivamente que era verdadeira.
Havia momentos, em que Francisca se isolava de tudo, ela precisava disso, pois sentia-se triste,
dececionada,
com a
vida e com todos. De vez em
quando, e sempre que isso acontecia,
ela implorava
à paz
para vir ter
consigo.
Assim
saboreava a
calma e refugiava-se do ar pesadíssimo que existia constantemente em seu redor, onde era raro poder encontrar o silêncio.
Por vezes, o
pensamento
viajava, e ela deixava-o ir, sentia-se feliz quando o acompanhava
de boa
vontade no
regresso ao passado, ou ao futuro imaginado. Pensava em tudo o que mudaria
se pudesse e se fosse exatamente agora, mas o
passado continuava lá, distante e perdidamente inalterável. Talvez não mudasse nada, se calhar
passaria por tudo, outra vez. Ou melhor, mudaria sim, apagaria o episódio que a fez mergulhar no
abismo, onde se encontrava presentemente. Dizia-
se também que afundava nele continuamente, mas rápido mudava
de opinião. Pois de nada adiantava imaginar
o que
poderia ter mudado, se tudo já se tinha passado e nada podia
fazer para voltar atrás.
De nada se arrependia, reviveria tudo outra
vez e passaria por tudo, novamente! A verdadeira
escola da vida era essa. Valorizar as coisas boas.
Viveu
momentos muito felizes, outros menos, mas mesmo os que a fizeram sofrer só lhe ensinaram
a compreender
melhor os azares que o destino
oferece. Sim… chorou, riu e saboreou um pouco de cada emoção. Provou e avaliou os vários gostos e
sensações. Mas principalmente aprendeu que em qualquer
obstáculo existe sempre uma servidão
para
cativar a vida. Simplesmente porque a vida
é a única e verdadeira escola. E quem não conseguir entender isso, pouco tem a ganhar.
Às
vezes questionava-se: - Como saber,
se esta vida é uma carta selada? Como aproveitar tudo o que está certo e
nos afastarmos
do que esta errado? E como prever
se fizemos
a escolha certa? Como saber que
explorámos o verdadeiro caminho, ou seguimos na
direção correcta? Será que a possibilidade de um dia alcançar a felicidade existe?...
Para Francisca,
a verdadeira resposta a
todas estas questões estava no coração
de cada um, nos sentimentos e, inclusivamente nas suas ações, boas
ou menos boas.
Francisca sentia-se uma autêntica aprendiz
da vida. Interrogava-se várias vezes, sobre a pouca sorte
que lhe batera à porta e tentava conformar-se em aceitá-la. Ela queria
acreditar no que dizia a si própria e assim tentava enganar-se, ao confiar plenamente na sua intuição que lhe
dizia que
agora era mais feliz… Poderia ter sido pior, Deus
sabe o que faz… obrigava-se ela a pensar.