domingo, 7 de agosto de 2011

O PERFEITO DO IMPERFEITO parte 22



   Francisca percebeu o quanto a realidade parecia e “era” inaceitável, amarga e bárbara ao enfrentar-mos estas diferenças, por vezes tão fáceis de concretizar, mas que para a maioria eram achadas como “simplesmente insignificantes”.
    Feliz ou infelizmente para alguns, já entraram para a vida com “a tal” diferença, fosse ela física ou mental, por vezes as duas deficiências juntas. Então Francisca perguntava-se o que seria melhor e mais justo? E ai permanecia a indecisão. Francisca só tinha de se mentalizar com o presente e com o facto de viver assim, pois era por alguma razão viável!...
    Não sabia responder a essa pergunta, talvez só imaginasse o pavor, mas sinceramente só lhe era possível responder por ela própria. O que não foi fácil ao sentir o verdadeiro sabor da derrota, mas o mais complicado foi o “sentir” a rejeição de certas pessoas, sim, porque esta habitava sempre ali por perto, embora bastante escondida, mas o certo é que estava lá juntamente com a humilhação. Talvez fosse esse o principal motivo do recusar ter um filho de Jorge, Francisca evitava dar uma oportunidade à evolução desta imprevista doença. Pelo menos por enquanto. Além de ser um grande desejo dela.
   Lembra muitas vezes as palavras “sábias” de sua mãe “os olhos são a janela da alma” e por isso “o nosso olhar reflecte tudo o que sentimos”, embora muitas vezes recusamos admitir tal facto. 
   Ela presenciava a transformação e repulsa de muitas famílias simplesmente porque se recusavam a lidar com as diferenças, fazendo-nos sentir ainda mais incapacitados e muito mais inválidos, “desculpando-se com a falta de tempo,” o tempo existe, é flexível quando o procuramos relativamente, cabe-nos a nós próprios saber aproveitá-lo e controlá-lo ao máximo…
   Francisca também sentira essa repulsa na pele, cada vez que se lembrava de Miguel o seu “grande amor” o “primeiro” em tudo especialmente em fazê-la sustentar a vergonha e com isso a timidez e solidão.

   Por vezes, juntamente com um grupinho de residentes saíam daquela casa, somente para aliviar o peso da tensão que se fazia sentir cada vez mais. Mas claro, estavam sempre acompanhados, pois as barreiras arquitectónicas eram diversas, e os acessos inacessíveis a qualquer pessoa em cadeira de rodas.
   Raramente iam ao teatro ou ao cinema mas cada vez que isso acontecia com a ajuda de outros amigos, ou quando lhes era possível satisfazer essa vontade, desfrutavam ao máximo dos momentos agradáveis e oferecidos pela vida. Onde descontraidamente e ao mesmo tempo, deixavam-se levar e saboreavam a saudade dos períodos longínquos, dos que alimentavam os respectivos optimismos. Pois também sentiam que apesar do azar lhes ter fechado a porta, a sorte abriu-lhes uma janela.
  Jorge continuaria a plantar-lhe, invisivelmente, a fortaleza e a harmonia na sua vida, na sua alma e no seu coração!
   Francisca pressentia Jorge constantemente a vigiá-la e a aconselhá-la em silêncio… ele era o seu anjo da guarda… continuava a colorir o seu presente e sabendo isso, acreditava cegamente nessa ilusão, só assim o seu presente e o seu futuro seriam mais suaves...
   Os meses iam passando e a amargura ficou pouco a pouco mais amena. Francisca conquistou uma alegria pelo menos, todos os seus irmãos casaram, tiveram filhos e não havia conhecimento, “por enquanto,” de nenhum vestígio desta perversa doença. Ela dizia para si “com toda a certeza” que Jorge ficaria feliz ao ver e saber que batalhou ao máximo para reconquistar a alegria perdida. Aquele bocado preso na sua vida que involuntariamente ele levou… mas que também lhe oferecia todos os dias…


   Um dia, ao presenciarem um grupo de alunos vindos em visita de estudo de uma escola próxima da instituição, para compreenderem e contactarem com os residentes com deficiência, Francisca viu a admiração no rosto de cada visitante, apercebeu-se do sentimento de pena de alguns, a repulsa de outros e até a um momento de receio de um deles assistiram. Então, completamente indignada e só depois de saírem disse:
   - Parece mesmo que vieram visitar o jardim zoológico…! A culpa é dos princípios que receberam dos progenitores ou daqueles que tiveram essa responsabilidade, que não os ensinaram a sentir as diferenças e a respeitá-las, protegendo-os demais, pensando que assim seria melhor para eles mas é obviamente o contrário.
     Helena riu-se com a comparação e disse:
   - Não deixes que isso te perturbe, para alguns a diferença não é muito grande…
     Francisca, depois de suspirar, continuou com o seu comentário desabafando o que lhe pesava no coração.
   - O certo é que já cá existe um pouco de tudo! há cobras venenosas, todo o tipo de macacos e gorilas, elefantes trombudos, há peruas sempre com o capricho de serem melhores e superiores aos outros, existem rinocerontes badalhocos, papagaios tagarelas, girafas bisbilhoteiras, etc…, todo o tipo de estranha bicharada!
  - É como em qualquer lugar, se formos analisar e aprofundar bem estas coisas…
  - Até existem gazelas e veados com enormes chifres! Permanecem é invisíveis…
  Acabaram a rir as duas de boa vontade, da comparação acabada de fazer que não deixava de ter a sua lógica. Infelizmente havia pessoas que tratavam um deficiente pior que muitos animais, e os alunos que nos visitaram, acabaram por sentir estas diferenças, mostrando reacções de acordo com a sua educação.
   Mas, o que é certo é que, cada ser humano é como é! Disso não tinha nenhuma dúvida.

 

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