terça-feira, 11 de dezembro de 2012

O PERFEITO DO IMPERFEITO 2ª parte


   Foi uma noite bastante custosa, e perturbada, parecia não querer terminar nunca, dormia aos poucos e acordava sobressaltada. Simplesmente porque crescia, pouco a pouco, a sombra da última imagem escondida no cantinho da memória, tal como um quadro tornando-se cada vez maior e mais nítido. O sorriso da criança prisioneira na sua mente, depois o som do tiro ecoando nos seus ouvidos, fazendo-a mergulhar no vazio. Supostos acontecimentos que eram um autêntico pesadelo e teimavam em permanecer.

    Tentou mexer-se, mas em vão, as dores impediam seu corpo de movimentar-se para qualquer movimento. Helena sabia que continuava lá mas tudo parecia irreal. Era uma lembrança demasiado penosa e maçadora atormentando o seu incómodo descanso.

   Eram gritos, eram risos, era sangue, eram sombras, pequenas ou grandes, ora fazia escuro, ora fazia claro e tudo se misturava, o enorme turbilhão, prevalecia dentro de si.

   Até que a aurora entrou pela janela dentro rompendo a noite. Helena sabia que era Outono, pois via as folhas caírem devagarinho, amarelas e quase secas, das árvores situadas no jardim, em frente à janela do quarto, via e ouvia o uivar do vento dançando com as mesmas.

   Mantinha o corpo dormente, com uma sensação de pavor, demasiado esquisita. A sua memória continuava adormecida, pois tinha medo, muito medo do passo que viria a seguir. Sentia imenso receio do que poderia encontrar ou do que estaria escondido para além da escuridão, esta preenchia o vazio “pesado” da sua mente.

     Fez mais um esforço para reavivar a memória, tentava descobrir o que a aguardaria brevemente, precisava urgentemente saber o que, tanto, a amedrontava. Fazia-se perguntas a si própria, às quais respondia em pensamento. Ao mesmo tempo olhava em seu redor, na esperança de descobrir alguma pista positiva.

    Quem era? Isso sabia. Onde estava? Também sabia. Que fazia naquele sítio? Pressentia algo de grave, pois tinha seringas e estava ligada á máquina. Como foi lá parar, e há quanto tempo? Não imaginava. Mas o mais importante era saber o porquê de acordar e permanecer ali? E qual o motivo que derivou toda esta situação? E aquele peluche? O que fazia naquele lugar? Continuava com imensas dúvidas. Helena sentiu um arrepio, ao puxar e reavivar a última imagem guardada no seu cérebro, aquela que se recusava acordar. A maneira simpática como o menino conhecido a abordou dizendo-lhe:

   - Mãos ao ar, rápido ou disparo! Nisto ouviu a gargalhada cheia de felicidade, lançada ao ar pela criança. Ela sorriu e ao mesmo tempo deu um pequeno passo para se voltar para ele, quando ouviu e sentiu exatamente no mesmo instante um disparo em que tudo parou, a luz da sua memória apagou-se. Sentiu uma dor tão profunda ao ressuscitar aqueles momentos, que a fizeram estremecer de medo. Helena esticou-se na tentativa de conseguir alcançar o peluche azul que estava na sua cama. Quando satisfez a vontade olhou-o bem como se lhe perguntasse:-que significa a tua presença aqui?

   Sim, ela lembrava-se perfeitamente bem, quando e a quem, tinha oferecido aquela prenda, só não percebia o que fazia ali e agora. Abraçou-o tão fortemente como se quisesse aliviar o pavor que iria sentir, ou buscasse nele a tranquilidade pretendida e a paz interior.

   Já era manhã, talvez perto das nove calculava ela, visto ser hora do pequeno-almoço, altura em que foi ajudada, a ajeitar-se melhor, tanto em higiene como em posição de meia-sentada, com varias almofadas pelos lados e atras, sentia-se muito mais confortável, foi também obrigada a comer um pouco de cereais e a beber um copo de leite quentinho.

    Quando o Dr. Rui Rodrigues, como estava escrito na etiqueta exposta no peito da sua bata, entrou pelo quarto dentro, com o ar bem-disposto, reservado e seguro de si, mas continuava bonito e cheio de charme. Cumprimentou-a alegremente, verificou a única máquina, aquela que ainda estava ligada, puxou a cadeira solitária de madeira nova que se encontrava ali e sentou-se ao seu lado. Helena pode apreciar e avaliar melhor todos os seus gestos, inclusive até sentir o suave cheiro da loção que usava.

    Ela sentia-se muito melhor física e moralmente, até sentiu vontade de lhe sorrir ao dizer: -bom dia, como esperava que fosse, mas continuava sem sentir as pernas e com a cabeça cheia de perguntas, mas com bastante receio de saber qual seria o resultado. Sentiu, também, a grande necessidade de conhecer a cruel verdade, por mais amarga que fosse.

 

    Helena ouviu e pediu respostas sinceras durante horas. Respostas intensas e desejadas por ela, algo que levou o Dr. Rui, a ficar com a sua paciente, largos minutos. Quando acabou de lhe comunicar o relatório medico, retirou-se prometendo-lhe voltar brevemente na expectativa de a encontrar mais animada e mais esperançosa. Saiu dali com os olhos repletos de lágrimas querendo espreitar, deixou Helena sozinha a seu pedido, para esta chorar à vontade, pensar sobre o futuro amedrontado e meditar sobre a triste tragédia que lhe tinha sucedido.

   Finalmente, ela ficou a conhecer as respostas às suas perguntas. Sim, Helena estava consciente do horrível acidente sofrido e da decepção crescente, a cada segundo, do seu presente incompleto. Era demasiado perverso o sentimento que se via obrigada a sustentar. Como seria o seu dia-a-dia no futuro? Não imaginava, nem queria sequer pensar, no pavor que iria sentir ao encarar o seu destino, ou melhor, que já estava a sentir. Como enfrentaria o seu amanhã? Foi alvejada por uma arma, sim… Foi uma criança a puxar o gatilho imaginando uma brincadeira, sim… Duas pessoas, um acto repleto de fatalidade. Uma jovem de vinte e um anos ficava assim paraplégica para o resto da sua vida.

   Não, a verdade não podia ser tão cruel, ela só podia estar no meio de um pesadelo prestes a terminar. Mas infelizmente a realidade estava ali, bem à sua frente, nua e crua, como ela fez questão de saber. E seu corpo denunciava bem o facto, disso ser bem real.

 

   Era uma vez uma criança, que brincava na calçada, como se sentia muito só e pretendia ocupar melhor o tempo, resolveu ir buscar sabendo onde, a arma do seu pai, uma verdadeira caçadeira. De repente, chega uma jovem conhecida dessas paragens, uma amiga do Luizinho, um menino de seis anos. Até aqui tudo bem! Não tivesse ele a infeliz ideia de apertar o gatilho, com o impulso do disparo e com o peso da arma, o menino cai, bate violentamente com a nuca no degrau de cimento, e fica-se instantaneamente, assim acontece o pior dos pesadelos.

   Foi um momento simplesmente igual aos outros, mas que trouxe consequências tão grandes. Durou apenas uns segundos, mas a tragédia permaneceria por toda a vida, seriam enormes feridas para permanecerem no seu destino. De quem seria a culpa? Talvez unicamente do acaso. De quem era a responsabilidade? De ninguém em especial e de todos ao mesmo tempo. A culpada seria, única e simplesmente, da previdência.

   Quanto ao pai de Luizinho, além de ser um viúvo, comum, com a irresponsabilidade de não esconder, devidamente, a arma de caça, era também um homem solitário e magoado com a vida, afogando as suas decepçoes no alcool. Vivia num mundo completamente isolado de tudo, daí deixar uma arma ao acaso, acessível às brincadeiras de um filho. Deparando-se assim, de repente, com mais esta dor tão profunda, sentindo-se em simultâneo demasiado culpado e desesperado.

 

   Helena chorava cada vez mais, abraçada ao peluche azul que agora lhe pertencia, lembrava-se do sorriso estampado no rosto da criança, dos enormes olhos negros, brilhantes que lhe transmitiam raios repletos de paz e doçura, as bochechas risonhas e fofinhas que denunciavam a sensação de felicidade, simplesmente por estar vivo, e poder desfrutar disso. Tudo se desmoronara, era crueldade a mais.

    Deu liberdade às lágrimas para lhe rolarem pelo rosto, desejava afogar nelas toda a infelicidade que lentamente a consumia, nem sequer sentia acanhamento, nem timidez, procurava a paz interior que, bem recôndita, ainda habitava nela, e lhe roubava a serenidade.

    Sentia-se revoltada com Deus, com o seu destino ou com o acaso? Demasiadamente ferida e magoada perguntou-se em voz alta: - Porque é não me levas-te no lugar de Luizinho? Teria sido muito melhor! Teria sido muito mais fácil a uma criança superar tal acidente, talvez porque tinha toda a sua vida pela frente!

   A opção foi muitíssimo mal concedida, pensou ela! Porquê meu Deus ficar numa vida inacabada, numa vida incompleta nos caminhos do destino? Lançada ao acaso somente porque a imperfeição me quis e me alcançou? Devias ter decidido levar-me, agora que estava despedaçada pelo provir, agora que seria irremediavelmente remediável…

   Assim o sofrimento seria menor!? Terá sido justo levar uma vida principiante e completamente sã? Deixando a outra suficientemente rasgada e perdida? Questionava-se Helena desesperada e injustiçada. Abraçada à única lembrança linda e palpável deixada por aquele que involuntariamente a atirou para um futuro imperfeito.

   Mas a maior dor, a mais profunda e a mais pesada era a invisível, aquela sentida no centro do coração, aquela que lhe tocou inesperadamente na alma e que a acompanharia em todos os momentos da sua vida, a que seria injustamente obrigada a carregar. Seria deveras difícil sentir-se despedaçada e ter que encarar a triste realidade! Ser obrigada a carregar esse fardo pela vida fora! Era uma existência demasiado injusta e realmente cruel!

   Seria castigo de Deus? Seria por ter feito algo errado? Seria por ter cancelado uma vida sem pedir licença? Sem pedir permissão, ao colocar um ponto final na linha de uma vida? Seria este o preço a pagar?

 

 

 

 

 

 

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