Aqui deixo mais uma parte do meu livro e deixo tambem o link para quem quizer: https://www.chiadoeditora.com/livraria/o-perfeito-do-imperfeito
CAPíTULO CINCO
A ÁRVORE DEPENADA
Na manhã seguinte, Francisca
olhou-se ao espelho, pela primeira vez desde que acordou. Não
via o seu rosto há mais de dez dias, e estava muito
curiosa de ver como se parecia. Achou-se
esquisita,
mais magra e branca, ainda com algumas ligaduras
a tapar o pouco cabelo que lhe restava.
Uma pequena madeixa
de cabelo, quase louro, espreitou
por
entre os panos brancos, que enrolavam sua
cabeça, e ela pensou, na árvore depenada.
Foi uma lembrança que a fez sorrir, pois agora aconteceu-
lhe
a mesma coisa, mas por outros
motivos bem diferentes.
O maior de todos, um dos grandes desafios
da vida. Quando caiu completamente
desamparada na calçada, fez vários golpes, e ficou, pela
segunda vez,
quase careca.
Francisca estava com dez anos apenas, mas
já estava consciente de que a perseverança era a maior das virtudes. O livro da vida continuava a
virar as páginas, querendo fazer entender que tudo é passageiro.
Passadas
algumas semanas,
depois das aulas começarem, sentiu-se obrigada a ceder
ao desgosto:
o primeiro corte de cabelo… depois de
ter
apanhado uma carga de “piolhos
e lêndeas”, que sendo uma coisa comum nas escolas, não se sabe o
porquê do seu aparecimento. Também ela foi vítima desse martírio. Sabia somente que era contagioso e fazia
uma tremenda comichão.
Por volta dos anos setenta e pouco, numa aldeia perto do fim do mundo, Francisca contemplava com grande tristeza e os olhos humedecidos, o peso da obrigação que
se desenrolava diante dos seus olhos. Sentada numa cadeira,
na varanda de sua casa em frente ao espelho,
contemplava pedaços do seu cabelo, que caiam ao seu redor.
Francisca despedia-se
em silêncio desses
bocados, pois sabia que era a última vez que os podia contemplar. Ela desejava parar o tempo e
fugir dali, com aqueles pedaços
de cabelos que eram seus, unicamente
seus. Sabia que era apenas mais uma página
virada, no livro da vida, fechou
os olhos e desejou
sumir dali. Era um grande
desgosto para ela… as lágrimas que lhe rolavam pelo rosto, pareciam de sangue. Cada vez que sentia, sem ver, o ruído das lâminas da tesoura nas mãos de seu pai, entristecia. Cada tesourada
sentida na sua cabeça ficara também
encravada na sua alma. Sim... chorar era a única maneira de libertar os seus medos e pensamentos negativos. Só assim, lhe era possível encontrar a solução, despejando tudo o que pudesse existir de
menos positivo. Ficaria mais leve e,
ao
mesmo tempo, mais forte para encarar o futuro. Francisca ficava a saber que por vezes o dar era necessário e quase “obrigatório “só sendo válido fazendo a
vontade ao coração.
Francisca
fazia por inverter a situação em
pensamentos positivos, como se oferecesse um dos seus
tesouros. Questionava-se e tentava perceber o porquê destas deceções.
No
fundo tentava simplesmente
encontrar uma desculpa para
ficar mais leve. Sentia as lágrimas caírem
com menos intensidade e
tentava, a qualquer custo, controlar o choro cada vez menor. Esforçava-se
por não chorar, cada vez que alguém ao passar na rua a olhava e tentava acalmá-la, dizendo-lhe o que já
estava farta de saber:
- Os teus lindos cabelos voltarão a crescer, e rapidamente,
tudo
voltará à normalidade. Mas para
Francisca
isso não bastava, porque o que ela queria
era o presente, e não o futuro.
De repente ganhava coragem, e olhava fixamente para a imagem que aparecia
à sua frente, evitando ceder à vontade do pessimismo e dizia, para si:
- Pareço uma árvore depenada...
Desabafava ela
ao sorrir baixinho, para evitar ser o que tinha
sido até agora: O alvo das atenções.
Como o outono estava ainda a arrumar
a casa para acolher dias mais frios, sentiu um arrepio só de
pensar na falta
que os longos cabelos lhe fariam. De pescoço
descoberto, todos os olhares ali presentes continuavam
fixos nela. E os olhos dela estavam
fixos na imagem que o espelho refletia, mas
Francisca continuava a não gostar. Insistiu na visão,
mas
depressa percebeu que não tinha outra
alternativa a não ser a de se aceitar
tal e qual como estava. Olhou-se bem
e concluiu que não era assim tão desagradável, não ficava melhor nem pior, apenas diferente.
Com o rosto destapado,
sentiu-se nua mas ao mesmo tempo mais pesada.
Porque se sentia mais tímida e envergonhada, a diferença reinava, embora fosse a mesma pessoa.
Os olhos grandes e verdes, o rosto perfeito e redondo com duas covinhas
nas bochechas, os lábios sorridentes que destapavam os
dentes
brancos e até as orelhas pequeninas
mostrava.
Olhou para o chão e viu os cabelos espalhados, depois
outra vez para a imagem que permanecia
diante dela, aquela que era refletida
no espelho. Reparou que algumas raízes, quase louras saíam do casulo, completando assim o lindo espetáculo.
Sentiu-se repentinamente mais madura e mais segura de si. Sim... ela adotaria aquela imagem…
afinal o novo visual
não
era assim tão mau. A nova figura seria a sua melhor amiga, além da sua boneca Joana. Com o novo visual, levantou-se e mirou-se
de novo, de lado, por trás, pela frente
e, concordando
com ela própria, fez um sinal de aprovação. Ela deu-se conta do seu crescimento,
a todos os níveis, principalmente agora de cabeça quase desnuda. Francisca sentiu vontade
de sorrir aos pensamentos que lhe inundaram a cabeça, uns minutos antes.
Todos ficaram na expectativa
de verem o que iria sair dali…
assim deu conta da admiração estampada
nos rostos que
denunciavam uma aceitação repentina. Ficaram também
contentes, pois ela estava linda, nem mais nem menos que antes, apenas
diferente e talvez
mais madura,
sim… a mudança por vezes é
necessária e de nada adianta ficar triste!
- Estás tão gira assim… que até pareces
uma
senhorita! Dizia-lhe a vizinha e amiga Jacinta, com
um enorme sorriso. Será que era mesmo verdade,
ou era somente mais um elogio para ela ficar mais tranquila?
Também,
naquele momento, isso era o que menos
importava. A sua
convicção era que estava
realmente linda.
- Ninguém te vai conhecer! Ficas tão bem! Diziam-lhe outras vozes conhecidas. O que, para além de ser verdade,
a deixava
mais poderosa e confiante
de que aquela diferença lhe ficava mesmo bem, apenas tinha que se mentalizar.
Sem comentários:
Enviar um comentário