sexta-feira, 10 de abril de 2015

O PERFEITO DO IMPERFEITO 4ª parte

Aqui deixo mais um pouco do meu livro..

Francisca continuava quieta e em silêncio, só o seu pensamento perguntava: porquê eu e agora? Desconhecia esse facto, mas ficou consciente das ªÇinjustas e das dúvidas às suas questões mais hesitantes. Ficou a saber que o seu presente incompleto estava ali, bem à sua frente. Tinha uma lesão na coluna, sim! Por esse motivo não sentia as pernas, mas a recuperação chegaria com o tempo e com o esforço.
Foi a informação que lhe fora dada pelo Dr. Rui, que se tornou cada vez mais custosa de encarar. Era demasiado perverso aquele sentimento, que o seu íntimo se recusava a aceitar, desejando rejeitá-lo para sempre. Sabia que aquela notícia era vaga, mas real, vendo-se obrigada a assumi-la sem nenhuma solução à vista.
- Como será o meu amanhã? Não! A verdade não pode ser tão cruel, posso estar no meio de um pesadelo prestes a terminar. Dizia Francisca, como se alguém a ouvisse.
Mas, infelizmente, a única que a poderia ouvir, era a sua realidade que estava ali, bem à sua frente, nua e crua, como ela fez questão de a conhecer. E o seu corpo denunciava bem o facto de isso parecer ser bem real.


Era uma vez uma criança que brincava na calçada em frente à sua casa. Como se sentia muito só e pretendia ocupar melhor o tempo, de brincar na rua, resolveu ir buscar a arma do seu pai, uma verdadeira caçadeira. Entretanto, chega Francisca, uma jovem conhecida dessas paragens e amiga do Luizinho, um menino de seis anos. Até aqui tudo bem não tivesse ele tido a infeliz ideia de apertar o gatilho! Dizia-se Francisca, ao recordar o sucedido. Com bastante custo, reviveu esses momentos, quando o doutor lhe contou a sua chegada ao hospital.
Com o impulso do disparo e com o peso da arma, o menino caíra, batendo violentamente com a nuca num degrau de cimento e adormecera, no mesmo instante. Sim… tudo acontecera como acontece no pior dos pesadelos!
Fora um momento semelhante a tantos outros, mas que, indesejavelmente, trouxera consequências demasiado grandes. Durou apenas alguns segundos, mas a tragédia poderia perdurar a vida inteira. Eram feridas enormes, que permaneceriam no seu corpo,
na sua memória e no seu destino, talvez para sempre, como tinha quase a certeza. De quem seria a culpa? Talvez e apenas do acaso. Quem seria o responsável? Ninguém em particular, todos ao mesmo tempo ou unicamente a provincia?

O pai de Luizinho, um viúvo comum, apesar da irresponsabilidade de não ter sabido esconder devidamente a arma de caça, era um homem solitário e magoado com a vida, que se culpava pela morte da mulher e afogava as suas deceções e mágoas no álcool. Vivia num mundo à parte, completamente isolado de tudo. Talvez isto justificasse deixar uma arma ao acaso, acessível às brincadeiras de um filho ainda criança… ou talvez não. Deparando-se com mais esta tragédia que lhe causara outra dor tão profunda, sentiu-se demasiado culpado e desesperado.
Francisca soube que fora o pai de Luizinho que lhe tinha levado o peluche como recordação e as flores, sim também as flores. Percebeu que acontecera muita coisa, enquanto ela tinha permanecido ausente.
          Agora que se recordava de tudo, Francisca chorava cada vez mais, abraçada ao kiko, que  agora  lhe  pertencia.  Lembrava-se do sorriso estampado no rosto da criança. Os olhos negros e brilhantes que transmitiam raios de paz e doçura. As bochechas risonhas e fofinhas que denunciavam a sensação de felicidade. Era uma criança simples e carinhosa procurando viver feliz e a poder desfrutar da vida. Tudo se desmoronara em segundos, numa crueldade difícil de aceitar.
Desejava afogar nas lágrimas que lhe rolavam pelo rosto toda a infelicidade e desespero, que repentinamente se apoderou dela. Procurava bem no fundo desse desânimo, um pouco de paz interior, que sabia ainda habitar nela.
Sentia-se revoltada com Deus, com o destino ou com o acaso? Perguntava-se ela, melindrada e confusa.
- Devias ter decidido levar-me a mim! Teria sido mais justo, do que levar uma vida principiante e sauvel! Deixaste-me rasgada e perdida, neste mundo!? Questionava-se Francisca de olhos já inchados e vermelhos. Agarrava-se com toda a sua força à única lembrança palpável, deixada por aquele que involuntariamente a projetou para um
futuro incompleto. Ao mesmo tempo, desejava apagar esses breves momentos.


A maior e mais pesada dor era invisível, era aquela dor que lhe tocou inesperadamente a alma e que a acompanharia em todos os momentos da sua vida. Sentia-se despedada ao ser obrigada a encarar a realidade… Era uma existência demasiado injusta e cruel.


algo errado, sem pedir licença? Sem pedir permissão, ao colocar um ponto final na linha de uma vida? Seria este o preço a pagar?... Apesar de convencida, ou resignada, recusava acreditar ao mesmo tempo, porque Deus não castiga, mostra apenas a oportunidade certa ou errada. Sim, podia ser isso… e ela tinha feito a escolha errada!
Francisca continuou agarrada ao kiko por mais algum tempo. Conseguia sentir perfeitamente o aroma do Luizinho e era agravel apreciar esse cheiro de criança!
- Que haja algo positivo! Assumia ela, enquanto sentia o cansaço apoderar-se do seu corpo e da sua cabeça que doía. Tinham sido demasiadas as perguntas que colocara a si própria e tinha chorado bastante. - Assim, dando livre vontade aos seus olhos, deixou que eles descansassem e adormeceu.
Quase todas as perguntas tinham agora uma resposta, ainda que amarga, inadequada ou severa, mas todas eram reais. Desejava apenas que nada disto tivesse acontecido. Ansiava encontrar a felicidade a seu jeito, com um gosto diferente, porque era a dela. Nunca tinha imaginado viver nada igual ao que estava a viver. Ela que dizia que devemos aceitar e compreender a diferença, partilhando a boa vontade com otimismo! Ela que tinha herdado essa força invisível do seu pai… não podia vacilar agora e agir de outra forma.
-O primeiro passo é sempre a parte mais difícil do caminho, dizia-lhe a voz do seu pai. Mas devemos segui-lo sempre de cabeça levantada! É esse o nosso objetivo e sempre será. Cada vez que tropeçarmos e cairmos, nas armadilhas do destino, nunca deveremos baixar a cabeça, para continuarmos no caminho desta vida.
           E eis que de repente, uma intensa luz a alcançou. Pouco a pouco, a imagem ficava mais nítida, mas, ao mesmo tempo, se afastava dela evaporando-se em direção ao céu. Mantinha o mesmo rosto de sempre, olhos verdes cheios de esperança, sorriso carinhoso e até o bigodinho que sempre lhe conheceu, ele exibia.
- Francisca, Francisca! Ouviu ela chamar. Era uma voz bem familiar que conhecia de criança. Quando se voltou para trás, viu o rosto de Luizinho a sorrir-lhe, ao mesmo tempo que se aproximavatrazendo numa das mãos o ursinho kiko e, na outra, a mão de um  bonito  homem  que  o  acompanhava. Quanto mais se aproximavam menos ela lhe distinguia o rosto, até que se desfizeram em luz, deixando um suave perfume no ar.
Ela tentou alcançá-los, mas sem êxito. Deixaram apenas o ursinho azul, o brilho e uma grande vida.
- Não te é permitido desistires agora! Nunca te deixarei, porque nada volta atrás. Tudo o que passou simplesmente voou, deixando as marcas,
por vezes invisíveis, na alma e na memória. Nunca
te esqueças que ficarei contigo, acredita que tudo pode acontecer. Dizia-lhe aquela voz de criança, bem conhecida.



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