Aqui deixo mais um pouco do meu livro..
Francisca continuava quieta e em silêncio, só o seu pensamento perguntava:
porquê eu e agora? Desconhecia esse facto, mas ficou consciente das
ªÇinjustiças e das dúvidas às suas questões mais
hesitantes.
Ficou a saber que o seu presente incompleto estava ali, bem à sua frente. Tinha uma
lesão na coluna, sim! Por esse motivo não sentia
as pernas, mas a recuperação chegaria
com o tempo e com o esforço.
Foi a informação
que lhe fora dada pelo Dr. Rui, que se tornou cada vez mais custosa de encarar. Era demasiado
perverso aquele sentimento,
que o seu íntimo se recusava a aceitar, desejando rejeitá-lo para
sempre. Sabia que aquela notícia era vaga, mas real,
vendo-se
obrigada a assumi-la sem nenhuma solução à vista.
- Como será o meu amanhã?
Não! A verdade
não pode ser tão cruel, só posso estar no meio de um pesadelo prestes a
terminar. Dizia Francisca,
como se alguém a ouvisse.
Mas, infelizmente,
a única que a poderia ouvir,
era a sua realidade que estava ali, bem à sua frente, nua e
crua,
como ela fez questão de a conhecer. E o
seu
corpo denunciava bem o facto
de isso parecer ser bem
real.
Era uma vez uma criança que brincava
na calçada em frente à sua casa. Como se sentia
muito só e pretendia ocupar melhor o tempo, de brincar na rua, resolveu ir buscar a arma
do seu pai, uma verdadeira caçadeira. Entretanto,
chega Francisca,
uma
jovem conhecida dessas paragens
e amiga do Luizinho, um menino de seis
anos. Até aqui tudo bem… não tivesse ele tido a infeliz ideia de apertar o gatilho! Dizia-se Francisca, ao recordar o sucedido. Com bastante custo, reviveu
esses momentos,
quando o doutor lhe contou a sua chegada ao hospital.
Com o impulso
do disparo e com o peso da
arma, o menino caíra, batendo violentamente com a nuca
num degrau de cimento
e adormecera,
no mesmo instante. Sim…
tudo acontecera como acontece no pior
dos pesadelos!
Fora um momento semelhante a tantos outros,
mas
que, indesejavelmente,
trouxera consequências demasiado grandes. Durou apenas alguns segundos, mas a tragédia poderia
perdurar a vida inteira. Eram feridas enormes,
que permaneceriam no seu corpo,
na sua memória
e no
seu destino, talvez para sempre, como já tinha
quase a certeza. De quem seria a culpa? Talvez e apenas do acaso. Quem seria o responsável?
Ninguém em particular, todos ao mesmo tempo ou
unicamente a providência?
O pai de Luizinho, um viúvo comum, apesar
da irresponsabilidade
de não ter sabido esconder devidamente a arma de
caça, era um homem solitário e magoado com
a vida, que se culpava pela morte da mulher
e afogava as suas deceções
e mágoas no álcool. Vivia num mundo à parte, completamente isolado de tudo. Talvez isto justificasse deixar uma arma ao acaso, acessível às brincadeiras
de um filho
ainda criança… ou talvez não. Deparando-se com mais esta
tragédia que lhe causara outra dor tão profunda, sentiu-se
demasiado culpado e desesperado.
Francisca soube que fora o pai de Luizinho
que
lhe tinha levado o peluche como recordação e as flores, sim… também
as flores. Percebeu que acontecera muita
coisa, enquanto ela tinha permanecido ausente.
Agora
que se recordava de tudo, Francisca chorava cada vez mais, abraçada ao
kiko, que agora lhe pertencia.
Lembrava-se do sorriso estampado no
rosto da criança. Os olhos
negros e brilhantes que transmitiam
raios de paz e doçura. As bochechas
risonhas e fofinhas que
denunciavam a sensação de felicidade. Era uma
criança simples e carinhosa procurando viver feliz e
a poder desfrutar da vida.
Tudo se desmoronara em segundos, numa crueldade difícil
de aceitar.
Desejava
afogar nas lágrimas que lhe rolavam pelo rosto toda a infelicidade
e desespero, que
repentinamente se apoderou dela. Procurava bem
no fundo desse desânimo, um pouco de paz interior, que sabia ainda habitar nela.
Sentia-se
revoltada com Deus, com o destino
ou com o acaso? Perguntava-se ela, melindrada e
confusa.
- Devias ter decidido levar-me a mim! Teria sido mais justo, do que levar uma vida principiante e saudável! Deixaste-me rasgada e perdida, neste
mundo!?
Questionava-se Francisca
de olhos já inchados e vermelhos. Agarrava-se
com toda a sua
força à única lembrança palpável,
deixada por aquele que involuntariamente a projetou para um
futuro incompleto. Ao mesmo tempo, desejava apagar
esses breves momentos.
A maior e mais
pesada dor era invisível,
era aquela dor que lhe tocou inesperadamente
a alma e que a acompanharia
em todos os momentos da sua vida.
Sentia-se despedaçada ao ser obrigada a encarar a realidade…
Era uma existência demasiado injusta e cruel.
algo errado, sem pedir licença?
Sem
pedir permissão,
ao colocar um ponto final na linha de uma vida? Seria este o preço a pagar?...
Apesar de convencida,
ou resignada, recusava
acreditar ao mesmo
tempo, porque Deus não castiga, mostra apenas a oportunidade certa ou errada. Sim, só podia ser
isso… e ela tinha
feito a escolha errada!
Francisca continuou agarrada ao kiko por mais algum tempo. Conseguia sentir perfeitamente
o aroma do Luizinho e era agradável
apreciar esse cheiro de criança!
- Que haja algo positivo! Assumia
ela,
enquanto sentia o cansaço apoderar-se do seu corpo e da sua
cabeça que doía. Tinham sido demasiadas as perguntas que colocara a si própria e tinha chorado bastante.
- Assim, dando livre vontade aos
seus olhos, deixou
que
eles descansassem
e adormeceu.
Quase todas as perguntas tinham agora uma resposta, ainda que amarga, inadequada ou severa,
mas
todas eram reais. Desejava apenas que
nada disto tivesse acontecido. Ansiava
encontrar a felicidade a seu jeito, com um gosto
diferente, porque era a dela. Nunca tinha imaginado
viver nada igual ao que estava a viver. Ela que dizia
que devemos aceitar e compreender a diferença,
partilhando a boa vontade com
otimismo! Ela que
tinha herdado essa força invisível do seu pai… não podia vacilar agora e agir de
outra forma.
-O primeiro passo
é sempre a parte mais difícil do caminho, dizia-lhe a voz do seu pai. Mas
devemos segui-lo sempre de cabeça
levantada! É esse o nosso objetivo e sempre será.
Cada vez que tropeçarmos
e cairmos, nas
armadilhas do destino, nunca deveremos baixar a cabeça, para continuarmos no caminho desta vida.
E eis que de repente, uma intensa luz a alcançou. Pouco a pouco, a
imagem ficava mais nítida, mas, ao mesmo tempo, se afastava dela evaporando-se
em direção
ao céu. Mantinha o mesmo rosto de sempre, olhos
verdes cheios de esperança, sorriso
carinhoso e até
o bigodinho que sempre lhe conheceu, ele exibia.
- Francisca, Francisca! Ouviu ela chamar. Era uma voz bem familiar que conhecia de criança. Quando se voltou para trás, viu o rosto de Luizinho a sorrir-lhe,
ao mesmo tempo que se aproximava, trazendo
numa das mãos
o ursinho
kiko
e, na outra, a mão de
um bonito
homem que
o
acompanhava. Quanto mais se aproximavam menos ela lhe distinguia o rosto, até que se desfizeram
em luz, deixando um suave perfume no ar.
Ela tentou alcançá-los,
mas sem êxito. Deixaram
apenas o ursinho azul, o brilho e uma grande dúvida.
- Não te é permitido desistires agora! Nunca te
deixarei, porque nada volta atrás. Tudo o que
passou simplesmente voou, deixando só as marcas,
por vezes invisíveis, na alma e na memória. Nunca
te esqueças que ficarei contigo, acredita que tudo pode acontecer. Dizia-lhe aquela voz de criança, bem conhecida.
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