quarta-feira, 8 de setembro de 2010

O PERFEITO DO IMPERFEITO 3

POIS É MEUS AMIGOS, COMO PROMETI E PODEM VER, AÍ VAI A 3ª PARTE DO  MEU LIVRO.


Já era manhã, talvez perto das nove calculava ela, visto ser hora do pequeno-almoço, altura em que foi ajudada e obrigada a comer um pouco de cereais e beber um copo de leite quentinho.

Quando o Dr. Rui Rodrigues, como estava escrito na etiqueta exposta no peito da sua bata, entrou pelo quarto dentro, com o ar bem disposto como era seu costume, parecia mais sereno, reservado e seguro de si, mas continuava bonito e cheio de charme. Cumprimentou-a alegremente, verificou a única máquina ainda lhe estava ligada, puxou a cadeira solitária de madeira nova que se encontrava ali e sentou-se ao seu lado.

Helena pode apreciar melhor todos os seus gestos, inclusivé até sentir o suave cheiro da loção que usava.

Helena sentia-se muito melhor fisicamente, até sentiu vontade de lhe sorrir ao dizer “bom dia”, como esperava que fosse, mas continuava com a cabeça cheia de perguntas, com bastante receio de saber qual seria o resultado. Sentiu também a necessidade de conhecer a cruel verdade…



Helena pediu respostas sinceras durante horas… Respostas intensas que levaram o Doutor a ficar com a sua paciente largos minutos. Quando ele acabou de lhe comunicar o relatório medico, retirou-se prometendo-lhe voltar brevemente na expectativa de a encontrar mais animada e mais esperançosa.

Saiu dali com os olhos repletos de lágrimas querendo espreitar, deixou Helena sozinha a seu pedido, para esta chorar à vontade, pensar sobre o futuro amedrontado e meditar sobre a triste tragédia que lhe tinha sucedido.

Finalmente ela ficou a conhecer as respostas às suas perguntas. Sim, Helena estava consciente do horrível acidente sofrido e da decepção crescente, a cada segundo, do seu presente incompleto.

Era demasiado perverso o sentimento que indesejavelmente se obrigava a sustentar. Como seria o seu dia a dia no futuro? Não imaginava, nem queria sequer pensar, no pavor que iria sentir ao encarar o seu destino, ou melhor, que já estava a sentir. Como enfrentaria o amanhã?

Foi alvejada por uma arma, sim… Foi uma criança a puxar o gatilho imaginando uma brincadeira… Duas pessoas, um acto repleto de fatalidade. Uma jovem de vinte e um anos ficava assim paraplégica para o resto da vida…

Não, a verdade não podia ser tão cruel… ela só podia estar no meio de um pesadelo prestes a terminar, mas a realidade estava à sua frente, nua e crua, como ela fez questão de saber. E seu corpo denunciava bem o facto do pesadelo ser real.



Era uma vez uma criança, que brincava na calçada… como se sentia muito só e pretendia ocupar melhor o tempo… resolveu ir buscar, sabendo onde, a arma do seu pai, ” uma verdadeira caçadeira “.

De repente… chega uma jovem conhecida, dessas paragens, uma amiga do Luizinho, um menino de seis anos. Até aqui tudo bem! Não tivesse ele a infeliz ideia de apertar o gatilho… com o impulso do disparo e com o peso da arma, o menino cai, bate violentamente com a nuca no degrau de cimento, e fica-se instantaneamente… assim acontece o pior dos pesadelos…

Foi um momento tão simples que trouxe consequências tão grandes... durou apenas segundos, mas a tragédia permaneceria por toda a vida, seriam enormes feridas para o destino…

De quem seria a culpa? Talvez unicamente do acaso. De quem era a responsabilidade? De ninguém em especial e de todos ao mesmo tempo. A culpada seria, única e simplesmente, a previdência.

Quanto ao pai de Luizinho, além de ser um viúvo, comum, com a irresponsabilidade de não esconder a arma de caça, era também um homem solitário e magoado com a vida. Vivia num mundo completamente isolado de tudo, daí deixar uma arma ao acaso, acessível às brincadeiras de um filho.

Deparando-se assim, de repente, com mais esta dor tão profunda… sentindo-se em simultâneo demasiado culpado e desesperado.



Helena chorava cada vez mais, abraçada ao peluche azul que agora lhe pertencia, lembrava-se do sorriso estampado no rosto da criança, dos enormes olhos negros, brilhantes que lhe transmitiam raios repletos de paz e doçura… as bochechas risonhas e fofinhas que denunciavam a sensação de felicidade, simplesmente por estar vivo, e poder desfrutar disso. Tudo se desmoronara, era crueldade a mais.

Deu liberdade às lágrimas para lhe rolarem pela cara… desejava afogar nelas toda a infelicidade que lentamente a consumia, nem sequer sentia acanhamento, nem timidez, procurava a paz interior que, bem recôndita, ainda habitava nela, e lhe roubava a serenidade.

Sentia-se revoltada com Deus? Com o seu destino ou com o acaso? Demasiado ferida perguntou-se: - Porquê não me levou no lugar de Luizinho? Teria sido muito melhor! Teria sido muito mais fácil a uma criança superar tal acidente, talvez porque tinha toda a sua vida pela frente!

A opção foi muitíssimo mal concedida, pensou ela! Porquê ficar numa vida inacabada? Numa vida incompleta nos caminhos do destino? Lançada ao acaso somente porque a imperfeição a alcançou? Devia ter decidido levá-la, agora que estava despedaçada pelo provir, agora que seria irremediavelmente remediável…

Assim o sofrimento seria menor!? Terá sido justo levar uma vida principiante e completamente sã? Deixando a outra suficientemente rasgada e perdida? Questionava-se Helena desesperada. Abraçada à única lembrança linda e palpável deixada por aquele que involuntariamente a atirou para um futuro imperfeito.

Mas a maior dor, a mais profunda e a mais pesada era a invisível, aquela sentida no centro do coração, aquela que lhe tocou inesperadamente na alma e que a acompanharia em todos os momentos da sua vida, a que seria injustamente obrigada a carregar.

Seria deveras difícil sentir-se despedaçada e ter que encarar a triste realidade! Ser obrigada a carregar esse fardo pela vida fora! Era uma existência demasiado injusta e realmente cruel!

Seria castigo de Deus? Seria por ter feito um aborto? Seria por ter cancelado uma vida sem pedir licença? Sem pedir permissão “ao colocar um ponto final “ na linha de uma vida? Seria este o preço a pagar por ter desistido de germinar uma vida futura?

1 comentário:

Anónimo disse...

o destino é cego mas a sociedade é pior...
Mário